19 de fevereiro de 2009

Capítulo 4

O menino desceu na estação da Vila Madalena e saiu correndo com sua pasta na mão. O coração batia tanto que parecia saltar pela boca. Quando virou a esquina, de longe, viu o pé de goiaba. Entrou na pequena vila e gritou: Sofia, Sofia! Ela apareceu na janela e como quem ganhasse um brinquedo de presente, sorriu. Entra moleque, você já está atrasado. O nome dele era José, mas Sofia logo o apelidou-o de moleque, porque apesar dos seus 12 anos de idade aparentava um menino de pouca idade. Sofia o conheceu pedindo dinheiro no semáforo. Estava garoando um pouco naquele dia. Ele aproximou-se do vidro do motorista e desenhou com seus pequenos dedos um coração para Sofia. Sofia olhou para Mahya, que estava no banco do carona, e não se conteve: abriu o vidro. Mahya disse-lhe que ele devia fazer aquele coração no vidro de todos os carros e que tudo aquilo não passava de puro marketing de rua. Mesmo assim, Sofia perguntou o nome dele e se ele estudava. Não tenho tempo, tenho que ajudar minha mãe aqui para que a gente tenha o que comer logo mais em casa. Desde então, Sofia fez um acordo com a mãe de José: pagaria os estudos do moleque se ela não deixasse mais ele na rua.

José subiu as escadas correndo e avistou no topo Carlinhos. Abriu os braços e deu um abraço no amigo. José era um negro simpático e puro sorriso, tinha uns olhos graúdos e castanhos que brilhava em qualquer tempo, horário do dia ou estação do ano. Sofia esperava-o logo na porta de sua sala. Ela se abaixou e o moleque correu para seus braços. Deu um beijo em Sofia daqueles bem morosos. Ele sempre dizia que adorava a demora quando beijava Sofia. Porque atrasou, moleque? Meu pai resolveu aparecer lá em casa, mamãe tá muito nervosa, Sofia. O pai de José era um bêbado que vivia abandonando a família, mas a mãe dele não conseguia dar um basta na situação e então eles permaneciam naquele vai-e-vem de relacionamento, ou melhor, se dizer de sexo, pois era o único argumento que o fazia voltar de tempos em tempos e, principalmente, da mãe de José aceitá-lo de volta. Ainda bem que sua mãe já ligou as trompas, senão corríamos o risco de ter vários molequinhos atazanando nossas vidas... O moleque deu uma gargalhada bem alta e disse: “isso tudo aí é amor pelo neguinho aqui, deixa só que eu tô ligadão em você, viu Sofia”. José colocou a pasta em cima da mesa de Sofia e de dentro dela tirou os lápis coloridos, olhou desolado para Sofia e sinalizou que estava faltando papel. Sofia abriu o armário e tirou um monte deles. Pronto, agora não há mais desculpas. José continuou a olhar para Sofia como quem ainda sentisse falta de algo. Sofia colocou a mão na cabeça e ligou para Laura pedindo-lhe que trouxesse até sua sala uma jarra com água gelada. Como diz Morrice: À chaque fou as marotte. O moleque olhou para Sofia e com um desdém que lhe era natural disse que devia ter perdido alguma aula de português na escola, pois não tinha entendido absolutamente nada do que ela falara. Ah! Moleque isso significa em francês: cada louco com sua mania. Em francês?! Sim, em francês. E onde tu aprendeu isso? Tu aprendeste, moleque, e não tu aprendeu... Todas as sextas-feiras à tarde, Sofia dedicava quase que duas horas do seu tempo ensinando a José os traços de um desenho perfeito e todas as técnicas para se criar um bom sapato. Hoje eu posso criar um tênis, Sofia?! Sofia não criava muito tênis no seu dia-a-dia, não era o seu forte. O que ela gostava mesmo era criar sapatos com saltos altos totalmente estilizados ou sapatilhas com toque pra lá de engraçadas.

José olhou irrequieto pra Sofia e soltou: você embromou, embromou e não me disse quem é este tal de Morrice. Sofia olhou para o moleque, levantou levemente as sobrancelhas e deu uma risadinha. É o namoradinho da vez, moleque. Outro?! Sofia riu da espontaneidade da pergunta de José e questionou-lhe se ele não estava sendo folgado demais. Já me basta Kai me perseguindo com os meus namoradinhos. Ela se levantou, abriu o armário e tirou um desenho. Mostrou para José. Era um sapato com plataforma dianteira, e na parte de cima tinha um pequeno recorte na frente meio que de lateral. O salto lembrava a Torre Eiffel. O moleque achou bonito, parecia que o salto era feito de aço. O engraçado era que, ao contrário dos outros saltos que Sofia desenhava, parecia que estava de cabeça pra baixo. O moleque só entendeu mesmo depois que Sofia mostrou-lhe uma foto da torre em Paris e disse-lhe que era proposital que o salto imitasse o monumento.

Laura entrou na sala com a jarra de água gelada e colocou-a em cima da mesa com os copos. Sofia toda vez que você arranja um namorado novo, você cria um sapato em homenagem a ele? Sofia deu uma risada gostosa. Aquele moleque era, na maioria das vezes, tão irônico e com um tempo de piada tão bom que sempre a divertia. Um dia você vai ter uma coleção grande, Sofia! A união faz a força, moleque, ou, como dizem os parisienses L’union fait la force. O menino achou que Sofia estava metida demais falando aquela língua. E ela ainda fazia biquinho mesmo com a boca carnuda que tinha, dava para ver uma parte dos dentes da frente. Sofia prometeu para José que assim que o carnaval passasse, ele conheceria Morrice. Combinado, então? Combinado. Sofia deu um beijo na testa de José, entregou-lhe um saquinho com pães de queijo e ele saiu correndo em direção à estação de metrô.

Diário de Sofia

Diariozinho,
Kai ficou puto por eu ter levado Morrice para almoçarmos. Bobeira dele, mas enfim, agora é oficial, acho que tô namorando aquele francês gatinho. Ah! E se quer saber, já dei pra ele também. Foi bom, melhor do que eu esperava, mas sem detalhes sórdidos, ok?! Esse namoro vai ser muito bom pro meu currículo. Imagina: Sofia namorando um francês legítimo... Só rindo para não chorar. E o melhor de tudo é que ele não fede.

O moleque continua mandando bem nos desenhos, será que eu descobri um talento?

E o carnaval?! Está chegando, hein... Eu, Manuela e Kai já estamos de malas prontas. Só estou preocupada com o Morrice, afinal, namorado e carnaval definitivamente não é uma dupla perfeita. Mas, enfim, vou pagar pra ver. Ele quer ir assistir as escolas de samba do rio, como todo gringo que se preze, e, eu já tinha outros planos com meus amigos, afinal, trato é trato. Estou muito ansiosa, mas tentarei não sofrer por antecipação. Vamos ver no que vai dar.

Sofia.