O sol bateu em seu rosto e não teve jeito, Sofia acordou e já ia ficar mal humorada. Em geral, gostava de fechar todas as janelas, cortinas, blackouts e tudo o que tinha direito para que a luz do sol não a acordasse, mas ao ver o beija flor em sua janela naquela manhã, simplesmente, por alguns instantes ela parou de respirar. Sofia tinha ido dormir tão entediada na noite anterior que se esqueceu da sua mania de deixar tudo escuro. Pronto, agora deu no que deu: nove horas da manhã e ela ali acordada em pleno domingo. Tinha que, então, inventar algo logo urgente para fazer, se não, o tédio do dia anterior poderia se prolongar por aquele dia tão ensolarado. As asas do beija-flor batiam com tamanha rapidez que nem seus olhos conseguiam acompanhá-las e ele era tão intrometido metendo seu bico entre as flores. Por um instante, Sofia pensou em ser assim: intrometida. Não. É melhor não, alguns de meus amigos já me acham inconveniente, imagine agora se eu resolvo devassá-los?! Iriam me deserdar como amiga. E deu uma leve risadinha. Até que não era má idéia, mas, diante das circunstâncias era melhor deixar tudo como estava mesmo que já era de bom tamanho. É, está na hora da senhorita levantar. Força, você vai vencer a preguiça! Acredite em você.
Quando Mahya viu a filha acordar foi logo perguntando se tinha bicho na cama. Mahya, não me deixe irritada, está muito cedo pra isso, cadê papai? Desde cedo, Sofia tinha sido acostumada pela mãe de chamar-lhe pelo nome. Ela era muito jovem quando Sofia nasceu e, narcisista que era tinha medo de envelhecer, por isso nunca deixou que a filha lhe chamasse de mãe. Se ela me chamar pelo nome, vamos parecer irmãs. E pareciam. Seu pai, pra variar, está lavando aquele carro, respondeu Mahya num tom de deboche. Mahya e Pedro sempre se deram muito bem. Apesar de terem se casado apenas porque Sofia vinha ao mundo e precisava de uma dita estrutura familiar, eles eram a exceção à regra: continuavam se amando. O único assunto que tirava Mahya do sério era aquele amor exacerbado que Pedro tinha pelo carro e, também, pelo futebol. Jurava que um dia, se tivesse coragem, ia pegar um machado e meter no carro. Mahya, se isso te irrita tanto, dê um filho pra papai que o amor dele se desvia. Pedro sempre quis ter um filho, mas os anos foram se passando e nada aconteceu. Sofia, então, pra recompensar o irmão que não teve, comportava-se muitas vezes como moleque. E, exatamente nestas horas, o pai se aproximava mais dela, talvez como uma forma de gratidão. Sofia deu uma olhada pela janela e acenou para o pai. Pedro, um tanto surpreso, deu de ombros como se quisesse perguntar o que tinha acontecido e Sofia rapidamente com um gesto deu-lhe uma banana. Ele gargalhou.
Sofia olhou para o relógio. Puta que pariu, são nove e meia, ainda! Se eu ligar pro Kai ele vai me matar e com toda razão. Eu o mataria sem dó nem piedade. Talvez Manuela esteja acordada. Se é que ainda não foi correr no parque, vou tentar. Ligou. Manu está? E ouviu a voz de sono, pra lá de embolada de Heitor, o namorado da amiga: “Manu está no parque, foi correr”. Desligou sem nem ouvir um obrigado. Como podia um casal daqueles se dar tão bem? Ela um esportista inveterada, ele um preguiçoso assumido. Ele só podia ser bom de cama, não tinha outra explicação.
Sofia pegou a bicicleta e parecendo uma louca pelas ruas foi cortando os carros e subindo em calçadas. Andou bastante pelo parque, mas não encontrou a amiga. Bom, o jeito é tomar uma água de coco e ir pra casa. Uma água de coco, por favor! Foi assim que Sofia conheceu Morrice. Ele perguntou com um sotaque inconfundível de estrangeiro tentando falar bem o português se ela queria tomar um café com ele. Café? Em pleno verão? Ah! Esse gringo está tirando com a minha cara... E sorriu. Bem, se você quiser me oferecer uma água de coco, acredito que vai ser mais conveniente neste momento. O papo rolou solto, enquanto Morrice dizia que era francês e estava no Brasil pra concluir seu mestrado em línguas, Sofia olhava encantada a beleza do rapaz. Línguas, hein, bem conveniente este mestrado. Se eu contar pros meus amigos que estava sentada quietinha pedindo uma água de coco, eles vão dizer que “partindo de Sofia, sinceramente, a gente pode esperar tudo”. Morrice, então, pediu que ela ensinasse algumas expressões típicas brasileiras... Eu só sei expressões chulas, adiantou. Culhuda. Culhuda?! Mas isso não é chulo, isso é... Morrice parou por um instante como se tivesse pensando e disse: pornografia. E Sofia deu uma gargalhada bem alto. Não, Morrice, culhuda significa uma mentira bem grande. E quem conta uma mentira tão grande destas é um culhudeiro por natureza. Que “interresante”! Agora sua vez, me conte uma. Faire du bordel. Ah! Isso aí é que é sacanagem, hein, Morrice. Não, faire du bordel é um idiomatismo que significa bagunçar o coreto. Sofia começou a achar aquele papo bastante interessante. É esse francesinho dá um bom caldo. Entre trocas de expressões idiomáticas, provérbios e palavrões Sofia ensinou o que podia e o que não podia para Morrice e este, um pouco acanhado de inicio, mas decidido ensinou-lhe outros tantos.
Sofia já estava começando a ficar com fome quando perguntou as horas ao vendedor de coco. São duas da tarde, respondeu. Bem, Morrice, eu preciso ir. A esta altura do campeonato meus pais já devem estar preocupados. Sofia e Morrice trocaram telefones, emails e ficaram de se falar pra que Sofia pudesse apresentá-lo aos seus amigos. Morrice, quantas línguas fluente você fala? Ah! Sofia, fluente mesmo, eu falo três: francês, inglês e português. Sofia chegou bem perto de Morrice e tascou-lhe um beijo, um beijo destes típicos de cinema e, no final, com a cara mais lavada possível disse: pronto, agora você pode falar que é um poliglota, já é fluente na língua de Sofia. Piscou o olho pra ele e saiu andando em sua bicicleta enquanto ria. Au revoir, Morrice! Au revoir... Morrice ficou ali, parado, rindo e olhando Sofia partir.