5 de dezembro de 2016

Tempo de amar


A composição e os recursos de linguagem que o autor escreve denuncia já de cara a grande obra literária que o leitor irá encontrar folheando Tempo de amar, de Autran Dourado. As entrelinhas nos envolve pela arte praticada com eximia maestria. A estrutura da história nos instiga e o final nos surpreende ainda mais pelo ano de publicação: originalmente no ano de 1952. Os personagens têm seus perfis psicológicos bem delineados e as palavras escolhidas a dedo. Uma obra literária, de fato! Na narrativa, Ismael é um homem que prefere o brilho das recordações de infância ao presente grotesco. Quando era criança, no início do século XX, tudo parecia perfeito: a próspera Fazenda dos Mamotes, onde seu avô, o coronel Eupídio Silveira, abrigava toda a família; o açude onde tomava longos banhos com a irmã, Ursulina, e a prima, Tarsila; o cheiro do bolo de fubá da avó, dona Ritota; as brincadeiras típicas da idade. Mas tudo isso foi ladeira abaixo depois do dia em que sua irmã morreu afogada bem na sua frente, aos 9 anos, sem que ele tivesse a iniciativa de tentar salvá-la. Era sua característica apatia começando a dar sinais. O trágico incidente levou embora não apenas a vida de Ursulina, mas também a inocência de Ismael. Com isso, veio a percepção de que nem tudo ao seu redor era tão belo quanto parecia. O avô, que enterrava suas emoções o mais fundo que podia, esvaziava todo o seu silêncio e sua tristeza no ventre de uma mulata sustentada por ele. A avó sabia disso e tentava não se importar. O poder de seu sobrenome era cada vez menor em Cercado Velho, sua cidade natal, no interior de Minas Gerais. Sua tia Evangelina, recém-egressa de um casamento realizado contra a vontade dos pais, sonhava ver a filha Tarsila casando-se sem amor, como alguém que cumpre um dever apenas por cumpri-lo – para ela, o amor é uma erva daninha, um vício destrutivo que só serve para desencaminhar as pessoas. Ainda assim, Ismael prefere a nostalgia à realidade. Nenhuma alegria consegue inundar Ismael por muito tempo. E isso vale também para Paula, que ele namora escondido. Ela é a chacota da cidade, por ser filha de uma ex-prostituta e não saber quem é seu pai. É nesse emaranhado de vidas apáticas, sem sentido e sem amor, que se desenvolve a história. Antes de Tempo de amar, Autran Dourado já havia publicado outros dois livros: Teia, em 1947, e Sombra e exílio, em 1950. E em 1995, os personagens de sua estréia como romancista voltariam no também reeditado Ópera dos fantoches, que mostra Ismael já no início da velhice, relatando sua vida ao escritor João da Fonseca Nogueira, personagem presente em várias histórias do autor. Um livro que, literalmente, vale muito à pena ler!